O Suprem Tribunal Federal editou a Súmula Vinculante nº 11 que diz que só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e nulidade de prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.
É no mínimo curiosa a Súmula. Seu texto é bastante detalhado, não me lembro de nem um outro instrumento jurídico que tenha previsto tantas consequências (todas) em um único diploma. Dando uma olhada rápida, é um instrumento bem interessante, pois ele faz com que o não uso de algemas seja a regra e o uso a exceção. Isso, a bem da verdade, me parece ser o mais correto mesmo. As algemas foram feitas para se conter qualquer tipo de desinteresse por parte do preso de colaborar com o ato da autoridade. Passariamos a usar algemas somente quando fosse realmente necessário, acabando com os espetáculos midiáticos e estigmatórios que uma prisão, que pode nem ser legítima, pode causar. O problema é: como se dá a aplicabilidade dessa Súmula?
Infelizmente, a aplicabilidade da Súmula reflete a aplicabilidade do próprio sistema penal. O Direito Penal pode ser observado sobre a ótica de dois discurssos: um oficial e outro real. O discurso oficial é aquele de um direito penal como o ramo do direito responsável por proteger os bens jurídicos mais relevantes. Essa perspectiva não é apenas falha, mas também não condiz com o direito penal real, ou o discurso real, que a forma como o direito penal se comporta, em planos práticos. O direito penal é utilizado, desde sua origem, como um instrumento de controle social. É uma forma de manipular e neutralizar os contra-interesses daqueles que dominam o sistema.
Para melhor compreender esse contexto, é interessante se refletir sobre como é instituido esse poder controlador. Para isso, é necessário se fazer uma análise econômica do direito penal. O poder de controle sobre as normas e a aplicabilidade jurídico penal deriva de um movimento de socialização através do poder de compra. A dita sociedade é apenas aquela que consegue se manter e se definir perante as normas de mercado. Quem não faz parte desse ciclo está fora da sociedade e, portanto, a margem do instrumento de controle sobre aqueles que não fazem parte, pois, apesar de serem a maioria populacional, são considerados como não integrantes da sociedade, por tanto passíveis de repressão pelo instrumento mais violento de controle. O direito penal usa da violência irracional de seu sistema para criar mecanismos de contenção dos selecionados. O critério de seleção daqueles a quem a norma penal se destina é estabelecido pelas normas de mercado. "Ao lado da mão invizível do mercado está a mão de ferro do Estado" (MORAIS DA ROSA) para conter os não clientes.
Dessa forma, estabelece-se um ambiente de guerra entre os controladores e os controlados, de modo a já haver uma presunção de culpa e de periculosidade (os agentes do sistema penal estão adquirindo um periculosômetro) sobre os selecionados, de modo que sempre incorrerão nas causas permissivas de aplicabilidade da Súmula Vinculante nº 11. Ela exige justificativa fundamentada, que sempre será a mesma: o agente oferecia risco, perigo, resistência. Claro, a justificativa se conterá a dizer apenas isso, e acham que estão fundamentando alguma coisa. Acabam fazendo o mesmo que se faz com as prisões cautelares: "vislumbro a existência dos requisitos legais". Isso nunca foi e nunca será fundamentação. Decisão fundamentada é aquela que demonstra claramente e concretamente os requisitos permissivos, seja para prisão cautelar seja para o uso de algemas. Acaba que já sabemos previamente (presumidamente) quem oferecerá riscos ou não. Como saber disso? É fácil, é só usar os critérios de seleção do próprio sistema penal.
De toda sorte, caso um membro da sociedade tenha um "problema" (nunca um crime) não será preciso o uso de algemas, claro, pois ele não faz parte da seleção do sistema penal. Agora, caso seja um selecionado cliente VIP do sistema penal, para ele sim, o in dubio pro reo se transforma em in dubio PAU no reo. Esqueça as garantias constitucionais, esqueça a presunção de inocência, esqueça os pressupostos legais, não ligue para as consequências que a Súmula Vinculante nº 11 elenca...afinal, é só mais um marginal. É cara pálida, levante a bandeira de violação aos direitos fundamentais, só não se esqueça que fazendo isso você dá poder ao Estado de escoher conforme seus interesses, quando você deixará de ser parte da sociedade...
...isso me lembra alguma coisa que aconteceu lá pelos anos 60. Deve ter sido alguma coisinha boba.
"In dubio pau no reo": eu ri muito, mas lamentei mais ainda depois.
ResponderExcluirÉ triste estudar princípios tão condizentes com nosso anseio de justiça social e observar atitudes totalmente contrárias na prática.
OI Antonio! Vamos manter contato aii
ResponderExcluirme fala dos projetos para este ano - ainda não conheço tua terra... abraço!